domingo, julho 7

António José

Vejo-a de novo no cemitério. Corta meticulosamente os pés dos cravos brancos para que fiquem todos do mesmo tamanho. São sempre brancos, mesmo quando não são cravos. Guarda a tesoura de costura dentro da mala coçada nos cantos, tira um trapo feito de lençóis velhos e limpa a fotografia a preto e branco logo ao lado do nome em letras douradas. Depois com uma vassoura pequena varre toda a poeira e restos de folhas secas da laje. E fica ali um pouco, de mãos cruzadas no ventre, mexendo os lábios. Uma reza muda. Guarda a vassoura e olha para foto, suspirando sem lágrimas. Levanta o queixo e olha em volta. O coveiro afasta-se empurrando o carrinho de mão, que chia ao longo do carreiro calcetado. Já vai longe. Suspira de novo enquanto afasta as mãos para ancas. Cospe para a foto e sorri triunfante. Com o trapo limpa de novo o vidro da fotografia. Vá. Agora bate-me se conseguires. E solta um risinho nervoso enquanto ajeita uma madeixa que se soltou do carrapito oleoso.
.
Deserto do Mundo, 2010

2 comentários:

CF disse...

As mulheres de carrapito têm cada história...

Menina Marota disse...

Dolorosamente real...
Gostei tanto desta história.

Um abraço